Como antecipei, os quilômetros finais dessas expedições são sempre momentos que acabam sendo inundados por um turbilhão de emoções. Dessa vez não poderia ser diferente, principalmente pelo caráter especial de uma viagem como essa, por uma trilha efetivamente muito pouco percorrida.
Sempre é difícil para quem não é um entusiasta do motociclismo entender o que nos move. Afinal, como explicar que alguém investe uma grana, tira um tempo da vida pra se isolar e gasta essa grana e esse tempo passando dez horas por dia na estrada, tomando chuva e sol no lombo, sentindo frio e calor, matando tudo que é tipo de bicho no peito e no capacete, numa posição desconfortável que vai acumulando dor em tudo que é lugar (nas mãos, nas articulações, na lombar, nas costas, nos ombros), vestidos com uma armadura que pesa mais de 15 KG somadas botas, jaqueta, calça e capacete, e lidando com perrengues infinitos, como moto quebrada, falta de gasolina, pneu careca, hotéis assombrados e assim por diante?
Normalmente, o motociclismo é associado com liberdade, o que é verdadeiro. Mas pessoalmente, vejo nessa prática alguns significados um pouco diferentes.
O primeiro deles está ligado ao espaço de reflexão que a moto e as longas viagens me proporcionam. Eu falo muito nas minhas palestras e nos meus textos sobre piloto automático. Essa foi um conceito que materializei quando estive no Nepal no monastério de Kopan, em 2013, num desses períodos de isolamento. Embora já tivesse vivenciado a importância de tais momentos em muitas situações, até mesmo nas viagens de moto que já havia feito, naquela oportunidade, internado em um monastério budista, percebi que a maioria de nós, ocidentais, vive uma vida quase doentia em que não deixamos espaço para o simples ato de pensar. Temos pressões de todos os lados: do trabalho, da família, dos relacionamentos, da “sociedade”, das tecnologias emergentes, do excesso de informação e acabamos entrando numa espécie de ciranda que nos torna cachorros correndo atrás do rabo. Quantas vezes você já não chegou em casa depois de um dia cheio de trabalho, exausto(a), e quando tentou olhar para o que fez no seu dia simplesmente não conseguiu se lembrar, embora o seu estado físico e emocional demonstrem que você simplesmente não parou?
Vivendo nesse ciclo vicioso, somos puxados para um processo em que simplesmente deixamos de fazer escolhas conscientes e entramos na síndrome de Zeca Pagodinho: deixa a vida me levar, vida leva eu. Absortos por todas as pressões cotidianas e massacrados pela pressão de uma sociedade em que cada vez mais o sucesso de mede por posses, e não por experiências (o caro novo, a casa nova, a roupa nova, o computador novo, o celular novo, e assim vai, num ciclo interminável), acabamos nos refugiando nas pequenas telas ao nosso redor, e a qualquer sinal de tempo “livre”, dá menos trabalho pegar o celular para ver a última postagem do facebook ou ler a última notícia da Internet (pra descobrir que, por exemplo, o “cantor” Belo chamou a polícia porque a namorada ficou horas no banheiro com prisão de ventre…. é de foder!!!!!), do que simplesmente parar pra pensar. Porque sim, pensar dá trabalho e muitas vezes dói, porque nos faz confrontar o que precisa ser confrontado. E assim, passamos pela vida sem consciência das nossas escolhas e sem dedicar míseros minutos para refletir sobre a coisa mais importante que qualquer pessoa tem, que é a sua própria vida (pense com você mesmo, qual foi a última vez que você tirou um único dia da sua vida pra pensar… na sua própria vida, nas suas escolhas e nos caminhos que tem percorrido ou gostaria de percorrer?).
Aí está, portanto, a primeira razão pela qual, mais do que gostar, sou movido pelo motociclismo. No capacete, não tenho celular, nem computador, nem internet, nem telefone tocando, nem ninguém me enchendo o saco (a não ser eu mesmo) e muito menos tenho pra onde fugir. Ali, sou só eu, comigo mesmo, por 10 horas por dia, sem nenhuma possibilidade de escapar. E ali, no capacete, sou obrigado a confrontar meus maiores demônios, a enfrentar meus medos e a ficar cara a cara com minhas decisões e escolhas. Rever as cagadas, as pisadas na bola e no que estou deixando a desejar com minha família, como homem, como líder consciente do seu raio de influência, como profissional, e como modelo e exemplo para meu filho. Ali, embaixo do capacete, me xingo, me “estapeio”, me elogio, me admiro, me acho um bosta, me acho foda, e vou processando todas essas coisas em uma espécie de coquetel que, ao final, sempre faz com que eu chegue ao destino muito diferente do que era quando comecei. Seguramente mais sereno, mais equilibrado, menos ansioso e muito, mas muito mesmo, mais em paz comigo mesmo.
O segundo aspecto está ligado à superação. E aqui, o sentido de superação, evidentemente, é lúdico. Muitas pessoas lutam bravamente, todos os dias, batalhas infinitamente mais árduas, mais relevantes e que demandam muito mais coragem e força. Mas independente disso, é claro que concluir uma viagem como essa, representa uma forma importante de superação. Um belo dia, numa conversa de bar, vem a ideia: um dia vou atravessar essa porra de transiberiana de moto! E aí, a gente vai lá e atravessa!!!!! E antes, enquanto planeja, ouve um milhão de vezes que somos malucos, que é perigoso, que é inseguro, que é difícil, que é impossível, que vão roubar a gente, que vão nos sequestrar, que vamos passar fome porque ninguém fala russo, que a máfia russa vai nos comer vivos, que vamos ser atacados por lobos e ursos na Sibéria, e por aí vai…. Ah, se eu ganhasse um real pra cada entrave que tentaram jogar no nosso caminho… Mas aí a gente bota na cabeça que vai, sim, fazer essa viagem acontecer, e no fim, rodamos os 10.000 KM entre Moscou e Vladivostok sãos e salvos. Com dificuldade pra alugar moto (na fase de preparação, encontramos inúmeras empresas de aluguel de moto na Rússia, mas nenhuma queria alugar moto pra dois malucos atravessaram a Rússia – uma delas disse, inclusive, que só alugaria se contratássemos junto um guarda costas!). Com dificuldade pra receber malas. Com dificuldade pra se comunicar. Com dificuldade pra encontrar hotel. Com dificuldade pra consertar a moto. Com dificuldade pra ficar bom da gripe que nos pegou com força na véspera do embarque. Enfim, com todo tipo de dificuldade. E aí, quando a viagem termina, vem aquela sensação de autoestima elevada e autoconfiança que são imbatíveis. Pode parecer uma bobagem, mas pra nós, o significado que realizar algo sim adquire, tem impacto direto nas nossas vidas e nas nossas carreiras. Pense na vida de um empreendedor, por exemplo. O cara resolver que vai montar um negócio. Pronto, começaram os problemas e surgem os abutres que sobrevoam a porra toda pra ficar dizendo que não vai dar certo. E aí, é igualzinho fazer uma expedição de moto. O cara tem que fechar os ouvidos, cagar pra opinião alheia, e simplesmente fazer acontecer. Assim se constroem vencedores. E esse é um sub-produto dessas expedições que tem valor imensurável.
E por último, quando a viagem não é feita em solitário (o que acentua os dois aspectos anteriores) vem a celebração da verdadeira amizade. Ninguém anda de moto com inimigo, pra começa de conversa. E quando pensamos em uma viagem de três semanas em que vamos ter que acordar e dormir todo dia com o mesmo cara, fazer todas as refeições, aguentar mutuamente roncos e flatulência alheia, tem que ser muito, mas muito amigo. Por uma circunstância da vida, não tive a oportunidade de crescer convivendo com meus irmãos. E assim, meus amigos ocuparam esse lugar, o que faz com que eu seja um cara gregário e que, felizmente, tem passado pela vida colecionando amigos. E quando falo amigos, não estou falando apenas de colegas. Estou falando de amigos para quem eu sei que posso ligar de onde estiver a hora que for e eles estarão lá por mim. Já ouviu aquele papinho de que amigos a gente conta nos dedos de uma mão? Porra nenhuma, conversa fiada, eu conto nos dedos das mãos, dos pés, e ainda falta dedo. E o motociclismo é, para mim, uma celebração do valor e da importância que essas pessoas têm na nossa vida. Os amigos são a família que escolhemos. E aí, não dava mesmo pra concluir essa viagem, que foi talvez o meu maior desafio motociclístico até aqui, com outra pessoa que não esse porra do Rodrigão. Conheço o Rodrigo há bons vinte e tantos anos. Começamos nossas carreiras de forma parecida, numa pindaíba desgraçada, sem grana absolutamente nenhuma, mas com sonhos pra caramba e com visões parecidas da vida. Nunca nos conformamos em ser o que éramos, e compartilhamos uma forma de ver o mundo que, tenho certeza, nos influenciou mutuamente. Me lembro da época de vacas MUITO magras, em que viajávamos a trabalho e recebíamos “diárias” que deveriam ser usadas para pagar hotel, alimentação e transporte nos locais pra onde íamos. Nessa época de dureza extrema, era muito comum que colegas nossos se hospedassem nos hotéis mais xexelentos e comessem nos restaurantes mais econômicos para economizar o que sobrava da diária a fim de compor a renda mensal. Nós enxergávamos as diárias como a oportunidade de viver a vida que queríamos e iríamos viver, era nosso momento de redenção e de provar o gosto de ficar em um hotel um pouco melhor e comer em um bom restaurante. Em outras palavras, era a chance de dar uma banana pra vida dura que levávamos e, ao sentir o gosto daquilo tudo, mobilizar a força e a energia pra progredir. Não raro, mesmo na pindaíba, estourávamos as diárias e éramos obrigados a apertar ainda mais o cinto para pagar as contas. Mas o que importava, era que já estávamos pensando e criando um modelo mental do que queríamos ser, e não nos conformávamos nunca com o que éramos.
E nossas vidas passaram, e nossas carreiras progrediram, e só o que não mudou foi a amizade e a certeza de que a gente pode conquistar qualquer coisa que a gente queira e que a melhor conquista sempre será a próxima. Rodrigão, foi do caralho compartilhar essa estrada com você, brother! E já que o tema é amigos e viagens de moto, Amaral, Barbalho, Montanha e Cesinha, vocês fizeram uma puta falta.
Outros posts ainda virão, falando um pouco sobre Vladvostok e sobre Moscou, mas para os efeitos da “Expedição Rota Transiberiana”, esse post marca o término da jornada de moto. Nunca antes os blogs que produzimos nas viagens haviam tido tanta repercussão. Foi surreal a interação com nossos leitores e, podem ter certeza, foi força pra nós quando estávamos em Omsk a um fio de cabelo de ter que abortar a viagem. Muito obrigado por terem viajado junto, por estarem na garupa o tempo todo e pela energia bacana que vocês nos enviaram. E pessoalmente, fiquei muito feliz com isso, porque desde minha primeira viagem de aventura em cima de uma moto, quase dez anos atrás, quando fui solo pra Ushuaia e criei o hábito de relatar as viagens, repito que a razão para dedicar tempo a isso, não é outra que não inspirar outras pessoas a fazerem o mesmo. Não importa se pra Rússia ou pra Morretes. Não importa se na Rota 66 ou no Rastro da Serpente. Não importa se de moto, de bicicleta ou a pé. Importa ir! Num mundo dominado pelo ter, viajar recupera a essência do ser, que é o que de fato vale a pena. Cada viagem ajuda a nos moldar, nos tira da zona de conforto e amplia as nossas referências. No final do dia, acredito que essa seja a essência extrema da vida: aproveitar a dádiva de estarmos vivos, para buscar incansável e incessantemente formas de evoluirmos, de aprendermos e de nos tornarmos seres humanos melhores. Ainda não encontrei forma mais interessante de fazer isso do que viajando. Que seus caminhos sejam cada vez mais interessantes, que suas descobertas sejam cada vez mais excitantes, e principalmente, que você sempre e de maneira determinada, simplesmente vá!
Ualll!! Que história empolgante da pra escrever
um bom livro hein Allan!!
Mais uma vez parabéns pela ousadia e coragem, que Deus continue te abençoando hoje e sempre!! Abs