E a viagem, finalmente, começou. E nessas pouco mais de 12 horas em território Russo, já deu pra ter um gostinho do que vai ser a viagem, para o bem e para o mal…
Tudo correu às mil maravilhas no embarque, brinde com vodka no aeroporto, vôos perfeitos, tudo no horário. Até que pousamos em São Petersburgo. Na imigração, tudo super tranquilo, apesar das cabines para falar com os oficiais da alfândega serem um tanto quanto intimidadoras. Uma luz verde acende, você avança num cubículo, acende a luz vermelha, entrega documentos e… sorri! 🙂 Mas a oficial super simpática só pergunta o motivo da viagem, carimba o passaporte, e bem-vindo à Russia!
Aí vamos à esteira de bagagem, esperamos, esperamos, esperamos mais um pouco, e depois de um interminável espera, essa é a mensagem na tela:
A vaca foi pro brejo… Fim do carregamento do AF4884 oriundo de Paris e nem sinal das nossas malas (e dos equipamentos, e das ferramentas, e dos medicamentos, e das cuecas, e dos desodorantes, e de todo o resto…). :’-((((((
Aí começa a saga da busca das malas perdidas. O vôo era Air France, mas operado pela Rossiya Airlines. Uma antiga companhia comprada pela Aeroflot, ainda em fase de incorporação. Portanto, alguma coisa no meio do caminho entre uma antiga estatal russa (bem dentro do esterótipo) e uma moderna companhia ocidental. Um pé lá, um pé cá. No guichê de informação, uma atendente meio mal-humorada pra atender um exército de gente sem mala. Dá pra deduzir que essa coisa de perder mala na Rossiya deve acontecer meio que com frequência. A moça mal humorada tenta explicar em inglês primitivo o que devemos fazer. É bem simples: ela entrega quatro formulários. Observamos com atenção e vemos que são todos iguais. Ela tenta explicar: vocês tem que preencher dois formulários para as bagagens que se perderam, e dois formulários para as bagagens que estão com vocês. Ok, parece simples. São formulários com meia dúzia de perguntas na frente e um espaço para descrever o conteúdo das malas atrás. Alegamos que as malas que estão conosco simplesmente… estão conosco!!!! Então, se as malas que estão conosco, estão conosco, porque diabos preencher um formulário igual ao das malas que estão perdidas? Como vocês devem imaginar, certas coisas, é melhor não perguntar (especialmente na Rússia). Ela entrega mais dois formulários, esses dois, para serem usados como modelo para o que iremos preencher. Oi???? Então pera lá: é pra preencher tudo igual ao que tá no modelo, é isso? Então porque diabos o formulário não vem pré-preenchido? Ok, ainda não aprendemos que certas perguntas é melhor deixar pra lá. Começamos a preencher o formulário e são, portanto, dois distintos em duas vias cada um, de igual teor. Ok, mas se são iguais, não dá pra ter um prosaico carboninho pra poupar o trabalho de preencher duas vezes? Ou talvez uma simples copiadora, ainda que aquelas da década de 90? Ok, nesse ponto, estamos quase aprendendo que não devemos fazer certas perguntas.
E lá vamos nós, hora dos formulários…
Começando pelo Rodrigão: rapidão, malandrão, não entendeu o inglês primitivo da moça e achou que era só um formulário. Preencheu voando baixo, voltou pro balcão da companhia feliz e orgulhoso me olhando com cara de “sai pra lá seu lerdão”, entrega o formulário com indescritível olhar de superioridade e… tem que preencher o segundo! 🙂 Lá vai ele, preenche o segundo conforme entendeu e… esqueceu de preencher o conteúdo da bagagem que estava perdida. Sim, é isso mesmo, há que se descrever todo o conteúdo das malas que foram extraviadas, informando ainda quantidade valores das coisas. Volta, mais dois formulários depois, e lá vai Rodrigão, com missão cumprida, três carimbos em um formulário e um no outro (que multiplicados por duas vias de cada já viram 8 carimbos), ligar para o seguro-viagem para reportar o desaparecimento das malas.
Agora, vamos aos meus formulários. Como quando Rodrigão voltou feliz e sorridente com o formulário único, eu ainda estava no primeiro, me poupei o trabalho de só descobrir a necessidade do segundo no guichê da alfândega. Preenchi os 4 formulários (2 formulários em 2 vias cada um) e vou em frente, certo de que estava tudo perfeito… hehehehe… chego lá, a moça do da alfândega, completamente emputecida (sei lá se com a vida, com o Stalin, com o Lênin ou com o fato de que ela é paga pra carimbar), pega o primeiro formulário (o de bagagem acompanhada) e faz uma careta que assustaria guarda de Chernobyl. Resmunga algumas coias em Russo e deduzo que os lugares onde a “querida” da companhia me orientou a marcar X estavam errados (ou eu entendido errado, vai saber). Ela corrige a bagaça e me manda assinar em cada correção, assim do lado, como que concordando com a alteração. Opa, melhor, pelo menos não vou precisar preencher de novo. Aí ela pega o segundo formulário e… faz outra careta pior do que a primeira, e o que consigo apreender do que ela me explica meio em Russo, meio em inglês primitivo, é que preciso preencher o conteúdo da bagagem extraviada (o que, descobri depois, Rodrigão também já tinha aprendido). Muito bem, pego mais dois formulários em branco e lá vou eu, descrever toooooooodo o conteúdo da bagagem extraviada, iniciando meu trabalho para chegar aos 6 formulários preenchidos. Difícil até lembrar de tudo, porque além dos equipamentos de uso pessoal na moto e das roupas, tem muita coisa para a moto (ferramentas, kits de reparo de pneus, barraca, saco de dormir, etc). Ou seja, é uma looooonga lista no tal formulário, onde ainda tenho que estimar os valores de cada coisa. Muito bem, formulário preenchido, retorno ao guichê. A mesma moça olha novamente o primeiro (o da bagagem acompanhada), vê que ela mesma já o havia analisado, pega o segundo e… Faz uma terceira careta, essa inédita, e, tenho certeza, reservada aos momentos mais sórdidos da sua existência. Diante da expressão dela tenho certeza que meu destino será a Sibéria, mas não montado em uma moto de 1200 cc, mas sim em uma prisão de segurança máxima mantido a base de vodka e strogonoff com carne de urso. Ela faz um rabisco no formulário e me explica impaciente que a soma dos valores da bagagem passa de EUR 1500, e portanto, eu tenho que colocar um maldito X em lugar diferente do lugar que a moça do balcão da cia aérea me mandou colocar!!!!!! Peço aos céus pra que um cossaco russo se materialize na minha frente e esmague o crânio daquela criatura, mas me lembro que viagem é pra isso mesmo, pra aprender e se divertir com os imprevistos (e exercitar auto-controle e paciência… hehehehe) e pego mais dois formulários em branco, partindo para o preenchimento do sétimo e oitavo formulário do dia, apenas lembrando que esse é aquele que tem trocentos itens descritos como constantes da bagagem desaparecida…
Termino minha nova missão, me invisto do meu melhor sorriso, e lá vou eu de novo ao guichê da alfândega. Nesse momento, a moça que me atendia não está mais lá, está em outra posição, e sou atendido por uma gorduchica com um rostinho angelical que lembra muito Annabelle, aquela bonequinha “simpática” do filme de terror: bochechas rosadas e olhar maligno! Claro que ela começa pelo primeiro formulário, aquele da bagagem desacompanhada, que já foi corrigido pela moça anterior com 7327 assinaturas minhas em todas as correções que ela fez. E é claro que ela empiça com as rasuras e…. me estende mais dois formulários em branco pra preencher de noooooooovo. Mostro a moça que fez as alterações antes e deu o ok, ela resmunga qualquer coisa em russo, a lazarentinha que tava lá antes nem se digna a olhar na nossa direção, faz um movimento com as mãos do tipo “to cagando e andando” e lá vou eu, preencher os formulários de número 9 e 10 do dia…
Retooooooorno ao balcão com formulários em mão, e agora a Annabelle, que já está junto com a magricela do mal a essas alturas, olha o formulário de bagagem acompanhada (o que fui preencher de novo por último), olha atrás e… hehehehehehe… diz que eu tenho que preencher o conteúdo da bagagem acompanhada também, me estende mais dois formulários em branco. Até penso em argumentar que o Rodrigão passou por ali há instantes e não teve que colocar uma vírgula sobre o conteúdo da sua bagagem acompanhada e já tem seus formulários tooooodos com os 2794 carimbos estampados, mas a essas alturas, definitivamente já aprendi que certas perguntas não devem ser feitas, caio na gargalhada (melhor rir do que chorar), pego resignado os formulários de número 11 e 12 do dia e lá vou eu pra mais uma sessão preenche-formulário.
Retooooooooooooooooorno ao balcão com formulários em mão e agora, já convencido de que entrei em uma dimensão paralela e estou sendo torturado por alguma máquina de última geração criada pela KGB para triturar psicologicamente os inimigos, entrego novamente os formulários. Annabelle agora inventa outra novidade, tenho que pesar a bagagem acompanhada (procedimento que, mais uma vez, Rodrigão não teve que fazer em situação absolutamente idêntica). Ela pesa, anota no formulário o peso de cerca de 10 kg e…. tcharaaaaaam!!!!!! Mete os três carimbos na frente, mais um atrás e minha bagagem de mão está finalmente liberada!!!!! 😀
Aí ela pega o formulário da bagagem perdida, pede os tickets de despacho da bagagem pela companhia aérea e revira os dois canhotinhos freneticamente. Nessa hora estou certo de que ela está procurando por algum pelo em ovo pra me mandar preencher os formulários de número 13 e 14 do dia… Pergunto gentilmente se posso ajudá-la, falando inglês feito bêbado, em câmera lenta (pra facilitar o entendimento) e com a boca mole (de saco cheio mesmo) e entendo que ela está procurando o peso das bagagens. Mostro a ela onde está o peso. As duas malas pesaram juntas 44 kg. Ela começa a anotar… hesita… pega novamente o primeiro formulário… meu coração acelera… minha boca seca… minha ideia é dar uma de louco e começar a correr pelado pelo saguão do aeroporto para ser imediatamente deportado para uma cela flutuante no lago Baikal… ela olha de novo, anota, e conclui com a seguinte frase: “we have a prrrrrroblem”…
Após alguns minutos que pareceram uma eternidade, entendo que no formulário existe mais um daqueles lugares de marcar X que a maldita da cia aérea nos orientou para copiar do formulário pré-preenchido de 18 parágrafos atrás, onde marcamos se as bagagens pesam mais ou menos de 50 kg. Ela mandou marcar onde pesa menos de 50 kg. E a Annabelle, encarnação do mal do demônio das estepes russas, resolveu somar a bagagem perdida (que pesa 44 kg) com a bagagem de mão (que pesa 10 kg, e que como já disse, sequer foi pesada no caso do Rodrigão) e deduz que fodeu tudo e, com olhar extasiado acima daquelas bochechas rosadas maquiavélicas, já estica a mão pra pegar os formulários 13 e 14… Nesse momento, possivelmente embutido dos dotes interpretativos adquiridos durante meu período no curso de ator cômico do Maurinho Zanatta, devo ter buscado no meu âmago a mais convincente expressão de desespero, desamparo ou loucura. A Annabelle, encarnação Soviética de Cérberos (cachorro de várias cabeças da mitologia grega que guardava os portões do mundo inferior impedindo as pobres almas de saírem), é acometida de um raio de bondade e comiseração, volta atrás, escreve umas paradas em russo no formulário enquanto chacoalha a cabeça negativamente de forma ostensiva e resmunga alguma maldição em russo, mete os 3 carimbos na frente e mais um carimbo atrás e finalmente… LIVRES!!!!!!!
Como depois de toda tempestade sempre vem a bonança, seguindo indicação do Alexander (nosso provedor de motos e informações utilíssimas sobre a Russia), pedimos um Uber que nos pega no terminal em Saint Peterburgo e após uma corrida de uns 40 minutos e 20 km que nos custou 700 rublos (cerca de 35 reais), chegamos ao nosso hotel, extremamente bem localizado, no centro da cidade e em frente de um shopping gigantesco, o que facilitou a tarefa de sair atrás de pelo menos uma muda de roupa pra esperar chegar as malas.
Depois das compras feitas e das primeiras doses de vodka em um bar do shopping pra “limpar a serpentina”, saímos para caminhar pela cidade por volta de meia noite pra ver a “white night” e andamos a pé por um bom tempo por uma avenida chamada Ligovski Prospect, que fica a duas quadras da rua do nosso hotel, onde a vida noturna é efervescente. Havíamos tido uma degustação das tais noites brancas em Helsinque mês passado, mas aqui foi onde percebemos sua manifestação mais efetiva. O auge das noites brancas ocorre em 20 de junho, mas ainda é possível perceber que mesmo quando o sol se põe completamente, o que ocorre por volta de 23:30, tudo continua claro, o céu fica permanentemente com uma iluminação clara, como um dia prestes a raiar. Provavelmente por isso, o movimento das ruas é intenso. A arquitetura do que percorremos até aqui é tremendamente interessante, prédios bonitos e muito bem cuidados, vários restaurantes e bares pela calçada, koffee shops onde as pessoas se reúnem em torno de narguiles, e vários monumentos monumentais (com o perdão do trocadilho).
Contactamos a cia aérea e a informação é que as malas realmente ficaram em Paris e chegarão hoje no mesmo vôo em que viemos ontem, ou seja, 24 horas depois… Perguntei se não tinha um vôo mais cedo, e a resposta foi de que a Rossiya só tem esse vôo entre Paris e São Petersburgo. Penso em perguntar se não seria razoável supor que, se a Aeroflot incorporou a Rossiya, não seria possível que a mala viesse em outro vôo mais cedo. Mas a essas alturas, definitivamente, já aprendemos que algumas perguntas simplesmente, é melhor não fazê-las… 🙂
Não sei se Sorrio kkkkkk ou se Choro….. Ou ambos … Udachi (boa sorte)
Li e ri muito. divirtam-se e todo cuidado é pouco.
Grande abraço
Alan, post sensacional, apesar dos atrapalhos e passado o sufoco, imagino que já consegue rir um pouco sobre o ocorrido!
Uma boa viagem, ansioso pelo próximo “enrosco” e de outras anabelles!!!!!!
Um abraço!
Бережёного бог бережёт.
Amigos, que a sorte e a segurança lhes acompanhem a partir de agora! Boa aventura e divirtam-se! PS: Caso se metam em alguma enrascada mais séria, pior que a do gato que engoliu um ouriço, tenho um grande amigo que foi premiado pelo Pravda. Ele tem excelentes relacionamentos com a turma que ainda mantém tal periódico, uma galerinha das antigas e ex-diretores de uma teoricamente desativada organização de três letrinhas que foi muito atuante nos tempos da guerra-fria. Disponham.
Pachito, esse contato “vale ouro”… hehehe… precisando, gritaremos! 🙂
Muito bom….que Saga!
Boa sorte.
Vc’s pisaram num “Rastro de um Corno” (Termo muito falado lá no meu Sergipe, que significa Azar) qdo desembarcaram na Russia…. kkkkkkkkkkkkk!!!! Boa sorte daqui pra frente Galera!!!
Gostei muito da leitura e tbm das fotos. Boa viagem,
Amei a descrição dos percalços com as malas….spaciba!!!A transciberiana os espera!